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A vida como ela é – crônica

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A vida como ela é


Crônica que saiu no http://www.vidabreve.com há uns dias atrás
Por:  – terça-feira

 

Ilustração: Rafa Camargo

 

 

Maria trabalha em duas casas em bairros diferentes, dividindo-se entre eles nos dias da semana. Hoje, acordou uma hora mais cedo para chegar ao trabalho. No dia de limpar as pratas da casa da dona Paula, o serviço não pode atrasar.

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Dona Paula é advogada. Trabalha em uma multinacional. Hoje, irá a uma audiência defender a empresa numa causa trabalhista. Talvez ela lembre de assinar a carteira de Maria.

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Vanessa teve que trabalhar como empregada doméstica depois da gravidez na adolescência. Antes, queria estudar psicologia. Ela não gostava do trabalho e foi embora da casa de dona Paula, onde agora é Maria quem limpa os banheiros. Casou com Elivelton, que transporta móveis pela cidade. Teve mais um filho, o Tiago, antes dos vinte anos, e decidiu ficar em casa.

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Num dos cafés do aeroporto de Congonhas, em São Paulo, Luana opera o caixa — café, cappuccino, pão de queijo, água, coca-cola… Puxa o latão de lixo para perto e senta sobre ele. Luana e os colegas não têm um banco disponível. As oito horas de trabalho diárias, seis vezes na semana, não admitem outra postura corporal. De vez em quando, Elivelton, seu irmão mais velho, lhe dá carona até Itaquera, onde ela mora. Desde que viu um homem atirar-se na frente do metrô e morrer esmagado, Luana tem momentos de pânico e não pode andar sozinha.

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Artur tem quinze anos, cabelos parafinados, um cordão prateado no pescoço. O supermercado só contrata jovens bem educados. Ele aprende a ser bonzinho. A organizar os mantimentos dentro da sacola, a dizer bom-dia e obrigado. Agora economiza dinheiro para comprar uma moto — com a qual quer dar carona para a dona Regina, sua avó, que só volta para casa aos domingos.

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Quase meia-noite e dona Regina passa roupa no quartinho dos fundos do apartamento do segundo andar em algum número da Rua Maranhão. A televisão está ligada, mas ela mal pode olhar, concentrada que está nas camisas brancas. Os patrões foram viajar no feriado e ela vai ficar cuidando da casa, das plantas, do cachorrinho. Curioso é que os patrões que usam as camisas brancas sejam brancos e dona Regina seja uma senhora negra. Ela fez setenta anos neste feriado.

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Estéfanie acorda todos os dias antes das quatro horas para tomar banho, café e pegar ônibus bem antes das cinco — podendo, assim, viajar sentada até o metrô que a leva ao Centro, onde passa seis horas ao telefone de um call center de banco. Hoje ela comprou um par de chinelos para dar de presente à dona Regina. Um dia, pretende estudar pedagogia, casar com o Artur e tornar-se professora.

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Luciana é professora do EJA em uma escola estadual. Ela sai do trabalho no Capão Redondo tarde da noite. Dá tempo de chegar em casa, na Lapa, antes da uma da madrugada. Seus alunos não fazem o que pede, mas ela acredita que só a educação constrói.

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Altamiro e Cleusa namoram há um ano e pretendem se casar. Conheceram-se no EJA. Antes de formar-se, ela quer juntar dinheiro para visitar o pai, seu José, no interior do Paraná. Cleusa quis estudar porque não se encontra mais emprego de doméstica sem ter algum estudo.

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José trabalhou a vida toda como pedreiro. Agora, velho e doente, senta-se à varanda da pequena casa que herdou do pai. Sua mulher morreu há muito tempo de câncer. Ele nunca teve dinheiro para muito mais que o alimento dos filhos. Adultos, foram todos embora para a cidade grande. José cumprimenta quem passa na rua com um aceno. Se alguém se aproxima para conversar, explica que, na vida, foi apenas um homem humilhado.

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No meio do caminho, alguém cujo nome não sabemos se pergunta se a vida poderia ser diferente, mas desiste logo, porque o trem chegou. Alguém cujo nome não sabemos é carregado para dentro do trem da vida sem ter nem como respirar. Nós, que observamos tais cenas, simplesmente vamos junto.


Arquivado em:Crônica, Literatura Tagged: Amor, EJA, Maria, Trabalho explorado

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